Sempre buscando alternativas de tratamento médico para Maria, viajamos a Belo Horizonte em janeiro de 1975. Naquela ocasião ela foi atendida por um neurologista, cujo consultório localizava-se nas proximidades da Santa Casa de Misericórdia, onde o facultativo exercia o cargo de chefe do departamento de neurologia e neurocirurgia daquele nosocômio.
Desse atendimento resultou orientação segura para ocuparmos serviços de neurologistas daqui do Espírito Santo, fato que ocorre há mais de trinta anos e com relativo sucesso. Só não é completo o êxito porque além da enfermidade de etiologia neurológica, dona Maria tem uma enfermidade de natureza alérgica que lhe traz sintomas incômodos.
Numa recente noite viajamos para uma cidade localizada no sudeste de Minas Gerais num desses ônibus que cuidam de excursões de turismo e de romarias. Pagamos um pacote que incluía todos os dispêndios da viagem, tais como hospedagens e alimentação completas durante todos os trajetos de ida, permanência e retorno. O objetivo desta viagem não era de turismo, nem de romaria; era simplesmente uma excursão para levar doentes crônicos de diversos males a um famoso curandeiro. Depois de várias horas de cansativa viagem, que teve como ponto de partida a cidade de Belo Horizonte, enveredamos por estradas com trechos mal pavimentados e outros ainda não contemplados com asfaltamento. Nosso ônibus estacionou no pátio de um desses hotéis integrantes do pacote da viagem. Lembrando-me que nosso destino seria a cidade de Cipó, aonde os pacientes, nesses incluídos dona Maria, seriam atendidos por um curandeiro, que tratava com terapêuticas alternativas e não reconhecidas pela medicina ética.
Nesse hotel, melhor dizendo: acampamento. Existiam acomodações reservadas para todos os passageiros, espalhadas por um galpão, disponibilizando pequenas tábuas acolchoadas, nas quais estavam escritos além dos nomes também os números dos bilhetes de todos os passageiros. Nessas peças, nada mais que isso era o local aonde deveríamos dormir nessa noite. Deitei-me acompanhado de pensamentos longínquos e incessantes, acrescidos de frio intenso agravado pela falta de agasalhos. Levantei por duas vezes para visitar as instalações sanitárias. Depois, ainda apossado do desconforto oferecido por aquelas tábuas de dormir, o cansaço me fez dormir um sonho cheio de sobressaltos. Sonhava que nosso ônibus, ora atravessava na pista, chegando perto de abismos; outras vezes, encontrando carros e carretas, trafegando na contra mão de direção. E as pistas esburacadas vistas no dia anterior, trechos encobertos pela lama. Em alguns momentos tivemos que saltar do coletivo para empurrá-lo para que pudesse ficar livre de um atoleiro. Mas, sobretudo, sentia frio e dores generalizadas pelo corpo. Seriam coisas reais ou, simplesmente sonhos impulsionados pela sensação do desconforto?
Acordamos todos bem de matina e logo éramos convidados a seguirmos a um grande salão repleto de longas mesas guarnecidas lado a lado por toscos bancos de madeira. Ali seria servida nossa refeição matinal para prosseguirmos imediatamente a viagem na direção do Rio Cipó, aonde deveria o curandeiro “Zé Gazé” estar nos aguardando para que fossem iniciadas as sessões de curas, verdadeiras “pajelanças”. Mas vamos à refeição: alimentos variados como angu de milho, cuscuz de farinha de pilão, canela de burro (biscoito de goma de mandioca), queijo minas frito, lingüiça frita, bolinhos de chuva, leite de vaca, café de amendoim torrado, café preto, biscoitos de araruta, polenta doce, arroz doce, broa de fubá, doce de mamão com rapadura e manteiga salgada, além de torradas de pão dormido. Toda essa fartura significava que passaríamos algumas horas viajando até que fizéssemos nova refeição.
Depois disso, aos solavancos causados pela estrada esburacada nosso ônibus prosseguia: tínhamos que alcançar Rio do Cipó antes do meio dia, almoçarmos rapidamente e iniciarmos os tratamentos dos enfermos que faziam parte da comitiva.
Enfim chegamos a uma pequena vila composta de casas simples, a maioria erguida sobre esteios de madeira, fechadas com paredes, exibindo tijolos crus isentas de reboco. Numa delas, ao lado existia um grande barracão provido de bancos de madeira feitos com tábuas que ainda exibiam os sinais das serras manuais de que foram feitas. No final, existia uma grande mesa onde se postava Zé Gazé, o curandeiro mais famoso dessa região. Enquanto alguns procuravam engolir algum alimento; outros se antecipavam aos ritos de tratamento que se revezavam celeremente.
Na maioria dos casos, uma antiga espada afiadíssima era instrumento usado pra pseudo cirurgias: quem se queixasse de sinusite, tinha a ponta da espada tocado no seio da face para ser processado o ato cirúrgico, sem, contudo, causar ferimento algum. Conforme fosse o local da enfermidade, cabeça, pescoço, pulmões, coluna vertebral, coração, estômago, rins, fígado, bexiga, intestinos e outras quaisquer partes do corpo, o ritual da espada se repetia, crendo os atendidos estar sendo submetidos a cirurgias. Ao lado da mesa do curandeiro existia uma pira com brasas onde se queimavam substâncias e uma fumaça aromática se espalhava pelo ambiente. A todos os enfermos eram servidas bebidas de colorações diversas, uma para cada tipo de enfermidade. Durante as cerimônias de cura, Zé Gazé, recitava palavras numa linguagem indecifrável e um coro o acompanhava com cânticos, repetindo refrões, também em linguagem não conhecida.
Toda essa cerimônia encerrou-se no entardecer. Depois disso, o grupo reunido fez rápida refeição e iniciou viagem de regresso. Todas as pessoas, ditas enfermas demonstravam-se eufóricas, sentindo-se plenamente curadas de todos os males.
De tudo quanto tivemos a oportunidade de testemunhar nessas práticas de curandeirismo, há alguma cura verdadeira que se possa processar por tais meios? Seria a crença um valor psicológico capaz de induzir essas curas? O que é isso afinal?
Nenhum comentário:
Postar um comentário