sábado, 11 de outubro de 2008

O CAVALINHO QUE FALAVA

Tudo se inicia no morro do cruzamento, em Jucutuquara, de onde subi com meu fusca por ruas íngremes, escadas e alguns obstáculos, tornados intransponíveis ao meu “possante”. Quando me faltava via trafegável, tomava o carro nas costas e o atravessava de um lado a outro e de cima a baixo. Nesses momentos tinha a sorte de que o carro não representasse peso que não fosse suportável, ou eu é que desenvolvia força hercúlea. Mas aos trancos e barrancos cheguei ao alto num barraco de único cômodo, onde Antarinho e colegas faziam uma confraternização. Lá havia música, alimentos e bebidas, tanto alcoólicas como coquetéis isentos de álcool, refrigerantes e frutas. Serviram-me e eu pequei somente uvas rubis, uma variedade de frutos de tamanho acima do normal. Eu comia continuamente esses frutos e sentia o sabor do tanino, característico da casca e das sementes dessa variedade de uvas. Em determinado momento me sentia culpado por consumir generosa quantidade de carboidratos dessa fruta. Certamente minha glicemia deveria estar aumentada, fato que costumeiramente ocorre quando faço ingesta de frutas em quantidades generosas.
Depois de horas de festejos, alguns casais de jovens divertiam-se dançando dessas músicas ditas modernas, que tem sons carregados de decibéis, desses que nos fazem sentir como se ocorressem no interior do estômago. Coisas de jovens! Nossa época dessas festas, as músicas eram outras: na cidade os boleros, os foxes, os sambas, as valsas e, no interior, aqueles músicas ditas “caipiras”, ora executadas em sanfonas, ora em violas, violões, acompanhadas ao ritmo de pandeiros e triângulos metálicos.
Como sempre, não me importando com minha faixa etária, eu procurava dialogar com aqueles jovens, lembrando a Antarinho que atuei na FAESA, educandário de nível superior dirigido, administrado e de propriedade de sua família, tendo ele, também, freqüentado aulas em que eu, na condição de docente, ministrei, por algum tempo, em disciplinas de auditoria, contabilidade geral e de mercado de capitais. Mas Antário Filho indagou-me:
- Mas o professor continua sendo nosso parceiro na FAESA?
- Não. Respondi-lhe.
- Do jeito que o senhor gosta e tem jeito para a coisa, não posso crer que tenha abandonado as salas de aula!
- Pois é, Antário. Não tive outra opção. Algumas enfermidades me tornaram incapaz; não foi por falta de convites e oportunidades. Isso continua a me fazer parte, mesmo nos meus constantes sonhos: a sala de aula era algo prazeroso.
Eu continuava a consumir aquelas uvas deliciosas, e a festinha já sinalizavam finalizar, quando Antário me pediu um favor:
- Professor Idomar, não querendo abusar de sua boa vontade, eu poderia contar com um favor seu?
- Diga-me do que se trata, pois jamais deixaria de atender a um pedido seu, lembrando que seu pedido é uma ordem. Eu tenho dívidas de gratidão com doutor Antário, seu pai, com dona Valdete, sua mãe, enfim com todos vocês. Lembro-me que me deram trabalho e acreditaram em mim num momento especial de minha vida. Portanto, conte comigo.
- Professor, tenho aqui um cavalinho de minha especial estima. Só a uma pessoa como o senhor eu posso confiar essa criatura, que à noite, tem um alojamento especial próximo à Praça Misael Pena, no Parque Moscoso. Além de lhe ficar grato pelo favor, eu lhe pago sete reais pelo serviço.
- Antário, nada disso! Não posso lhe cobrar nada! Colocou-me o dinheiro no bolso e disse.
- Professor; não falemos mais nisso. Negócio combinado!
Peguei o cavalinho pelo cabresto e o conduzia do alto do Morro do Romão, chegando ao Morro da Fonte Grande, eu ouvi uma voz que nunca ouvira:
- Professor, eu sinto cansaço. Seria demais lhe pedir que me carregasse?
- Claro que não!
Tomei aquela criatura dócil nos braços e percebi que seu corpo tinha uma leveza especial, parecia flutuar. E ele me perguntava?
- Suporta bem meu peso?
- Que peso?
- Professor, nós acabamos de chegar ao Morro da Fonte Grande, temos que descer pela esquerda, se nós continuássemos rumando à direita chegaríamos a Santo Antônio.
Descemos à esquerda, conforme orientação do dócil cavalinho e já podíamos ver a proximidade da cidade alta de Vitória. Bastaria pequena caminhada e teríamos visão parcial do Parque Moscoso. Ante a proximidade do nosso destino, minha imaginação se fixava nos diálogos que fazia com essa criatura... Teria suas palavras, sua leveza, tanto de peso quanto de bons fluídos, algo de sobrenatural? Havia alguém se materializado neste ser para comunicar algo de importância de que eu não conseguisse entender. Lembrava-me de Antário Filho assassinado há alguns anos, meu aluno e filho de meus benfeitores e esse animal que falava comigo com tamanha sutileza, me tratando como se fosse alguém de espírito infantil, portador da inocência própria dos anjos.
Enfim, chegando às proximidades da Praça Misael Pena, localizada no Parque Moscoso, o dócil cavalinho me avisava:
- Professor, como pode ver ali, naquelas baias é minha morada. Chegamos! Fico-lhe grato pela paciência que teve comigo, me tratando como se de verdade se trata ao semelhante. Quando quiser, visite-me, sentir-me-ei honrado!
Segui de volta por outro caminho, pois meu fusca se encontrava estacionado nas proximidades da casa em que houve a festinha. Nada além de meu carro havia ali, a festa terminara e todos os convidados se haviam retirado rumo às suas casas. Peguei meu fusca e desci por aqueles caminhos desenhados naquelas ruas tortuosas, escadarias, ressaltos e, num determinado local teria que passar equilibrando sobre um cabo de aço estirado de um segmento de rua a outro. Duvidei que conseguisse sai ileso dessa aventura, mas, como que por um passe de mágica cheguei ao outro lado ileso. Prossegui meu caminho para chegar a casa. Na realidade quando ia contar à Anésia toda a façanha, acordei.

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