Não posso passar algum tempo sem voltar a Várzea Alegre. Com certeza essa não é a Várzea Alegre atual, talvez seja a de 1958, de acordo com pessoas que viviam por lá e fatos que ocorriam nessa contemporaneidade.
Eis os fatos que ocorriam, dos quais me lembro:
Trabalhava numa farmácia em que meu pai e João Romélio Zonta eram sócios, eu era o representante do meu pai nesse negócio, que se localizava num ponto comercial de um imóvel pertencente aos irmãos Oscar e Luiz Pacífico. Hoje, e, em outras oportunidades de visitas, o estabelecimento, na minha memória jamais teria se mudado de lá, ainda, mesmo na atualidade, convivendo com mais duas farmácias, a nossa permanece lá e intacta. É bem verdade que durante mais de cinquenta anos, aquelas instalações, aqueles enormes vidros de xaropes, elixires, vinhos reconstituintes de marcas diversas, litros e mais litros de álcool, éter sulfúrico, tintura de iodo, solução de mercúrio cromo, todos estão lá. Bem verdade que empoeirados e com rótulos esmaecidos e amarelados pela ação do tempo. Nesta madrugada fazia limpeza e arrumação nas prateleiras, varria o chão com uma vassoura deixada comigo por uma moça loura, empregada doméstica de dona Wilma e Romélio. Ela me fazia uma recomendação: “- cuide bem desta vassoura, pois dona Wilma, minha patroa, sempre me recomenda isso”. Eu dizia a tal moça que poderia ficar tranquila, pois eu varreria toda a sujeira da farmácia e teria o máximo cuidado com a vassoura de dona Wilma.
Romélio atendia um cliente – pessoa da família Mognatto, de Tabocas e eu cumprimentei esse senhor. Ele, simplesmente, ignorou meu cumprimento, como se nem tivesse ouvido o que lhe disse. É bom que se diga, o povo de Várzea Alegre tinha grande admiração e respeito por Romélio; quanto a mim, nessa época, já sofria rejeição, que se agravou mais tarde quando me tornei titular desse estabelecimento farmacêutico – coisas reais sofridas por mim, que viriam a me afetar seriamente.
A casa que Romélio e eu construímos, ao lado de uma ponte que há sobre o Rio Santa Maria do Rio Doce estava pronta e habitada por Romélio e sua esposa, somente o casal, pois seu primogênito havia falecido e, ainda, não tinham mais filhos. Quanto à farmácia, sua localização permanecia no imóvel dos irmãos “Pacífico” e, na minha mente, permanece lá tal e qual a sua instalação original.
Sempre que retorno a Várzea Alegre, revejo nossa farmácia e fico preocupado porque me parece que continuamos sem pagar os alugueres do ponto comercial. Falei sobre isso a Romélio e ele me advertiu: “- não toque nesse assunto e lembre-se que por muitos anos pagamos alugueres ao velho “Baratela”, pai do atual proprietário do imóvel. Portanto, não toque nesse assunto e ponto final”.
Martinho Bieth me ofereceu para que eu comprasse os imóveis de sua propriedade, a casa aonde residia e a barraca aonde funcionava sua tenda de ferreiro. Pensei: que faço com essas casas? Não sou ferreiro, embora domine um pouco do ofício de serralheiro, por ter participado, por algum tempo, do curso de serralheria na Escola Técnica Federal. Poderia, sim, ampliar essa oficina, acrescentando aparelhagens de solda acetilênica e de solda elétrica. Poderia também expandir o negócio, produzindo grades, portas de aço, além de foices, roncas, facões, apontar picaretas, alavancas; enfim ferramentas diversas. Mas, e a farmácia? Desistiria simplesmente, ou cuidaria dessa profissão como alternativa, contratando profissionais ferreiros, serralheiros e funileiros? Agora pergunto: “– porque nosso ferreiro teria resolvido desfazer-se de seu negócio e posto a venda, tanto sua residência como sua oficina? Até hoje não teria entendido se isso fosse verdade; seria?
Num determinado dia, Várzea Alegre vivia festividades, e multidões de pessoas teriam acorrido lá para participarem da festa de inauguração da nova igreja dedicada a Nossa Senhora do Bom Parto, a padroeira da localidade. Nesse dia falava com Luiz Lucas, Valentim Simoura, Silvino Araujo, Sebastião Pivetta, Pedro Corteletti, Antônio Roccon, Pietro Sperandio Pierazzo, Antônio Zanotti, Theodoro Zanotti, Guilherme Zanotti e outros integrantes dessa numerosa família.
Apesar da idade de 16 anos, eu vivia em pleno período da adolescência, tinha uma namorada de quem eu era apaixonado, como diriam: encantamentos da juventude! Quanto ao resto, eu fazia o que todos os rapazes da minha faixa etária eram capazes; trabalhava na farmácia, freqüentava a igreja e, nessa época, era costumeiro nas tardes de sábado e de domingo realizarem-se sorteios de prendas e leilões com objetivo de arrecadar recursos para a igreja, mas no ponto alto desses encontros foram realizados durante todas as tardes do mês de maio, época consagrada a Maria Santíssima. E fazíamos mais: freqüentávamos bailes realizados em residências de todo o entorno, época que ainda não havia energia elétrica, sendo normal a iluminação dessas salas de baile com lamparinas e lampiões a querosene. Os instrumentos musicais consistiam em concertinas, acordeons e pandeiros e as danças varavam noites e madrugadas. Nem é preciso dizer que o combustível fartamente usado era cachaça, daquela pura que boi, nem passarinho bebem! Mas, o que reinava era a alegria! Ah! Se esse tempo voltasse! Com certeza, faria tudo igual e novamente! Hoje, o que vemos, também nessa Várzea Alegre são bailes realizados ao som ensurdecedor das modernas bandas e luzes negras intermitentes, não se podendo ouvir algo que se fale, nem ver direito com que se fala! Parece mesmo que o som mexe com o estômago e os intestinos. Hoje é assim mesmo!
Havia outra diversão frequentemente realizada – as pescarias com rede de arrasto, evoluindo, depois, para o uso das redes três malhas, assim que chegou à localidade o dentista de nome Pedro Ponche o “Tutu”. Daí por diante a pesca se tornou predatória, quase extinguindo toda a fauna ictiológica desses pequenos rios, pois esse dentista pertencia a uma família originalmente habitante das margens do Rio Doce, que tinha na pesca a sua principal atividade. Conseguíamos capturar peixões enormes, alguns chegavam ao peso de até 300 gramas. Mas, como eram grandes! Ao final de uma pescaria com duração de 4 a 5 horas, alguns goles de cachaça para não se resfriar, a gente conseguia a façanha de pescar uns três a quatro quilogramas desses peixes compostos de acarás, cascudos, traíras, piaus, piabas e alguns dos terríveis mandis, até alguma cumbaca.
Como era bela a visão que se tinha, quando se desembarcasse em Caldeirão, aonde residia uma família Magdalon, em local extremo do município de Santa Teresa, quase na chegada da Serra do “Caratinga”. De lá se podia avistar toda a baixada de Várzea Alegre. Se fosse de setembro a dezembro tudo o que se via era enormes e verdes milharais; de janeiro a março, todo aquele verde dava lugar à cor amarelada das folhas e palhas do milho maduro e, de abril a agosto podia-se ver alguns tapetes verdes das plantações de feijão e a terra novamente ia sendo desnudada para que novos plantios dos cereais arroz e milho fossem renovados. Sinto saudade desse tempo. Mas, hoje, esta mesma paisagem geográfica é representada por cafezais que cobrem desde margens dos rios Santa Maria e Várzea Alegre às fraldas das montanhas circundantes da grande baixada. Entre um e outro cafezal, há plantios de hortaliças compostas por tomateiros, plantios de inhame, de pimentões, pepinos, de jiló, de batata-doce, de feijão de vagem e de quiabo.
As visões de Várzea Alegre povoam a minha mente durante e principalmente nas madrugadas; vejo a localidade antiga, a meio antiga e a contemporânea. Nesses sonhos, épocas se misturam: coisas antigas, coisas meio antigas e atuais. As idades passadas parecem atuais; e as atuais estão junto às antigas, tudo se misturando na mente, mas nitidamente. Quando rememoro esses fatos no consciente tenho como definir precisamente personagens e épocas. Mesmo assim, sinto satisfação ao rever fatos de quaisquer épocas.
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